A cigana arrumou a minha franja…
- daquele jeito que só quem já tem muita intimidade consegue fazer.
Desde o meio da gira, a minha garganta travou.
Uma vontade imensa, incontrolável de chorar.
O olho enchia de lágrimas, mas por algum motivo elas não escorriam.
Eu estava esperando sentir arrepios, uma sensação de “é isso que eu sempre busquei”, uma identificação imediata.
Mas, quando essa densidade de emoções tão forte, tão grande e tão diferente do que eu esperava me pegou, eu não tava lá tão bem preparada...
Eu sempre quis conhecer a Umbanda. Na verdade, sempre quis conhecer mais de perto várias religiões de matriz africana. Mas, não sei, não fazia muito sentido para mim procurar por isso em São Paulo. Falava que quando eu fosse para a Bahia eu ia atrás disso, que eu finalmente iria conhecer.
Mas cheguei em Salvador e adivinha? Não fui atrás. Não busquei.
Foi a gira que veio até mim. Literalmente.
Do nada, numa terça-feira à noite qualquer, apareceu uma gira na frente do meu Hostel.
Na areia da praia, com o Farol da Barra de fundo e o soar do tambor intercalado com o quebrar das ondas…
(Foto tirada com permissão do Templo das Rainhas)
No começo, a olhos leigos, parece até um teatro.
Mas, em algum momento, você percebe, entende ali no meio, que não é.
Sente.
Em algum momento, meu corpo sentiu que eu presenciava algo muito maior do que os meus olhos podiam conceber. Algo grandioso. Potente.
E eu me permiti estar ali e apreciar. Vivenciar tudo isso, de verdade.
Com toda abertura, presença e respeito necessários.
Em determinado momento, as pessoas podiam descer para pedir conselhos para as entidades.
Eu sentia que o meu corpo queria ir. O nó na minha garganta não cessava. O choro ficava travado.
Mas minha mente automaticamente entrava em cena com todos os seus “e se…?”
“Mas como eu vou descer lá? Para quem eu vou perguntar? O que eu vou perguntar? Eu nem conheço direito a religião, não sei se é nada a ver eu ir lá”.
No meio de tantos pensamentos, uma entidade apontou para um amigo meu, à minha direita, e o chamou
Meu coração automaticamente disparou.
Se eu não descesse, eu ia me arrepender.
Eu sabia disso.
Meu amigo desceu. Exatamente a permissão que eu precisava para fazer o mesmo.
Pisei na areia.
E só soube para onde ir…
Duas mulheres me chamaram mais atenção. Uma me dava um pouco de medo, confesso, mas a outra me parecia familiar de alguma forma.
Ela me fascinou desde o começo.
Mulher preta, vestida toda de verde. O cabelo raspado amarelo, como algumas camadas de sua saia bufante.
Foi até ela que eu fui:
“Me deu uma vontade incontrolável de chorar. Queria saber o que você tem pra me dizer” - foi tudo o que eu consegui formular.
“Quando foi que você ficou assim?”
Essa pergunta me atravessou. Não consegui entender se o “assim” era sobre o que eu sentia ali na hora ou não. Para falar a verdade, ainda não sei.
“Ah, desde o meio da gira. Agora a pouco” - respondi, mas sem tanta certeza.
Ela me pegou pelo braço e, virada para o mar, disse, num sotaque diferente, de quem talvez não tivesse o português brasileiro como língua materna:
“Tolo é quem vem para cá só para apreciar. E não se descarrega”
O mar. Sempre foi o lugar em que eu mais me senti conectada a vida inteira. Era como se ela já soubesse.
“Tira essa amargura que não é sua de dentro de você”
“Não sei quem colocou ela aí, mas ela não te pertence”
Enquanto ela me dizia essas palavras, o meu choro fazia com que a minha boca tremesse sem querer. Era como se ali, do lado dela, eu não pudesse controlar meu corpo.
“As pessoas não te compreendem. Mas você não precisa mais se sentir perdida.
Você não veio parar aqui por acaso.
Quando você se sentir perdida, você não está.
Seu Exú está sempre com você”
Ao final, ela me abraçou.
Daqueles abraços que você tem vontade de ficar para sempre. Me disse:
“Cigana Magalenha do ouro te abençoa, minha filha”
Deu para sentir ela ficando na ponta do pé. Quando seus pés tocaram novamente o chão, o peso do mundo todo tinha sido tirado de cima dos meus ombros.
É maluco, mas eu realmente senti a benção.
Ela me deu um gole da bebida dela - que parecia um licor de café ou chocolate, uma Baileys, talvez - e aquilo passou pelo meu corpo limpando tudo por dentro.
O abraço acabou e eu disse “Obrigada” (meio contrariada, “será que eu deveria ter falado ‘Axé’?”) e fui em direção ao mar.
Queria colocar meus pézinhos na água e conversar, agradecer.
Eu não sabia se me dirigia a Deus, ao Universo, se falava “Axé”, “Laroyê” ou qualquer outra coisa. No fim, falei todos só para garantir.
(Mas vejo agora que a espiritualidade não precisa de tantas formalidades)
A onda bateu na pedra, que jogou água para cima de mim.
Eu ia para trás, mas, no fim, sempre voltava para mais perto da água.
Outra onda bateu na pedra. Dessa vez, foi parar direto no meu rosto.
Eu ri. Como quem brinca com o mar, entende a graça.
“Tira de mim, pode me limpar”.
Os pés firmes, olhos fechados. A intenção dada.
E voltei devagar do mar, para a areia, para a escada, a calçada, o lugar que eu estava sentada no começo…
No caminho todo, respirando fundo.
Sentei, inspirei…
Uma leveza que eu não lembro de já ter sentido antes. Como se o mundo todo tivesse diminuído um pouco o seu ritmo e as coisas tivessem ficado em suspenso por alguns instantes.
“Será que é assim que as pessoas se sentem?
Será que é isso se sentir em paz?”
- lembro de ter pensado.
Seu Zé Pilintra tava na nossa frente, tomando cerveja quente e conversando. Pela primeira vez eu consegui sorrir no meio da gira.
Leveza.
Tudo o que ele me falava, tudo o que acontecia ali, me caía como sinal.
Porque, no fim, era mesmo.
Uma cigana.
Justo uma cigana que meu coração escolheu para conversar.
Às vezes a gente não sabe na cabeça, sabe por dentro…
✨Minhas Aleatoriedades da Semana
1- Sinais. Essa edição aqui é de fevereiro, de quando eu estava na dúvida se ia para Salvador ou não. São sempre sinais.
2- “Pedaço de mim”, na Netflix, me prendeu muitooo! Fazia tempo que não via uma série tão boa! Fica a recomendação pra vocês :)
3- No clima do texto, eu AMO essa página aqui:
4- Esse, do coração, sobre como viajar me fez criativa (ou vice-versa):
🤝 Troca comigo?
Qual a sua relação com espiritualidade? Algo já mexeu muito com você? Me conta aqui…
juro que eu chorei lendo isso! minha primeira conexão com a umbanda também foi na benção de uma cigana, em um dia que eu não esperava e não estava preparada. senti cada palavra, que incrível!